Nota de editor: embora datado de Junho de 2022, o seu conteúdo é confirmado, entre outros, pelos dados mais recentes disponibilizados pelas autoridades britânicas em matéria de pobreza (ver por exemplo aqui).
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
8 min de leitura
Os pobres da Escócia são deixados para morrer
Os políticos só se preocupam em salvar os ricos
Publicado por
em 6 de Junho de 2022 (original aqui)

Há indiscutivelmente um tema unificador que liga muitas das dificuldades atuais da Grã-Bretanha – a proximidade. Desde políticos ricos que enfrentam a pobreza a conselheiros de drogas que nunca fumaram um charro, a Grã-Bretanha está repleta de problemas de proximidade em todas as suas principais instituições e em todos os níveis de governação.
Elegemos políticos para defender os nossos interesses. Mas para promover os interesses de qualquer grupo, é preciso primeiro perceber algo desses interesses. Quantos deputados já sentiram o que é a pobreza? Quantos tiveram os seus intervalos de ida à casa de banho cronometrados ou os seus benefícios no trabalho cortados?
Até que ponto procuramos a raiz dos problemas da Grã-Bretanha não nas escolhas de estilo de vida, atitudes e comportamentos dos trabalhadores, e dos pobres e vulneráveis, mas nas hipóteses sem sentido, nas falsas crenças e nos preconceitos das pessoas aparentemente educadas, cultas e sofisticadas?
Se a pandemia colocou a tónica em alguma coisa, foi certamente que o “distanciamento social” – isto é, o enorme fosso da experiência social entre aqueles que detêm o poder e a influência e aqueles que são os recetores das suas decisões – colocou a Grã-Bretanha de joelhos muito antes da pandemia.
As relações entre privação social e problemas de saúde são bem compreendidas. Sabemos há 40 anos que a desindustrialização rápida foi uma bomba-relógio de saúde pública – optámos por não agir.
Na década de 1980, a publicação do famoso Black Report – encomendado em 1977 pelo governo trabalhista anterior para investigar as desigualdades em saúde – encontrou diferenças significativas nos resultados em saúde entre as classes sociais em ambos os sexos e em todas as faixas etárias. A introdução do relatório afirmou: “As diferenças de classe social e a mortalidade começam no nascimento. Em 1971, as taxas de mortalidade neonatal (mortes no primeiro mês de vida) foram duas vezes mais altas para os filhos de trabalhadores pouco qualificados do que para as classes profissionais.”
O governo de Thatcher fez todo o possível para suprimir as conclusões deste relatório. As recomendações de Sir Douglas Black – que as desigualdades sociais ligadas à morte e à doença deveriam ser seriamente combatidas com o aumento do abono de família, melhoria na habitação e com o acordar condições mínimas de trabalho com os sindicatos – foram rejeitadas antes de serem ridicularizadas na praça política.
As tendências já desencadeadas quando o Black Report foi publicado aceleraram e tornaram-se simplesmente indiscutíveis durante a pandemia, que demonstrou o impacto desproporcional da Covid sobre os trabalhadores e os pobres.
Na comunidade pós-industrial de Possil, no noroeste de Glasgow, o impacto dessa diferença na saúde é ao mesmo tempo omnipresente e impercetível, de tal modo que os seus moradores se habituaram a ficar doentes e a verem os seus familiares mais próximas partirem antes do seu tempo, enquanto os funcionários públicos põem as mãos na cabeça, intrigados sobre porque é que essas pessoas não se conseguem recompor.
Ao anoitecer, por volta das 17 horas, os dois bares locais já estão cheios. Alguns estão mais dispostos a falar do que outros, mas todas as pessoas com quem falo estão a gerir, pelo menos, três problemas de saúde simultâneos e crónicos – conhecidos como multimorbilidade na profissão médica.
Anteriormente associada aos idosos, a multimorbilidade está a começar a afetar as pessoas numa idade muito mais jovem. No bar, metade dos clientes que desfrutam de uma bebida à tarde sofrem de problemas de mobilidade. Dois deles têm dificuldade em falar devido a problemas respiratórios. Um tem uma doença cerebral degenerativa e tem dificuldade em manter-se na conversa, enquanto o seu filho (e que não bebe por ser o condutor designado) lhe traz outra bebida.
Um homem, Andy, conta-me o seu primeiro susto de saúde aos 29 anos. Apesar da sua aparência saudável, depois disso sofreu quatro ataques cardíacos. Outrora um entusiasta da maratona, Andy tem agora um estilo de vida restrito e destaca-se hoje por ser a única pessoa no bar que não está a beber. Está aqui para passar algum tempo com o seu amigo, que se senta ao lado, ofegante, com as muletas apoiadas na mesa, ostentando a expressão assombrada de um homem que sabe que o seu próximo suspiro pode ser o último; a companhia de Andy, tenho a certeza, é muito bem-vinda.
Andy partilha uma história preocupante (e hilariante) sobre o seu quarto ataque cardíaco, que teve na sua casa, ao virar da esquina do bar. Dada a sua relativa experiência em paragens cardíacas e o seu desinteresse em ir à urgência – onde estava convencido de que os médicos não acreditariam nele – decidiu simplesmente esperar em casa até de manhã, antes de ir consultar um médico de família em quem confiava.
Essa médica de família era a Dra. Lynsay Crawford, que trabalhou em áreas como esta durante a maior parte da sua carreira. “Há uma atitude fatalista”, diz ela. Ela descreveu uma interação com um doente que estava a ponderar os prós e os contras de fazer uma escolha dramática de estilo de vida para evitar uma morte prematura. “Lembro-me de estarmos a conversar e ele ter dito: ‘A minha vida é uma porcaria, sei que se fizesse todas estas coisas viveria mais tempo, mas não quero mesmo viver uma porcaria de vida mais longa'”, riu-se. “Tem razão, meu amigo, o meu trabalho aqui está feito”, brincou ela. “Mais um sucesso terapêutico!”
Esta leviandade, que resultava da proximidade que Lynsay tinha com os seus pacientes, tinha uma qualidade curativa própria. Ela dedicava algum tempo a conhecê-los, às suas condições e idiossincrasias, de tal forma que contar uma piada, ou disparar uma reprimenda quando alguém precisava de ouvir um tom mais duro, era uma questão de instinto. Fiquei profundamente comovido com a sua devoção a esta comunidade resistente, mas cheia de desafios – e com o quanto ela era amada por aqueles que estavam sob os seus cuidados.
Infelizmente, Lynsay já não trabalha no centro de saúde local. Devido ao stress relacionado com o trabalho e às consequências para a sua vida doméstica, mudou-se. Depois de anos a tentar comunicar o impacto da má prestação de cuidados de saúde tanto nos doentes como na clínica local, resignou-se ao facto de que nada iria mudar – tal como os seus doentes perante as suas doenças.
Que hipóteses têm comunidades como Possil quando os recursos são tão escassos que mesmo os médicos que amam as áreas em que trabalham, e as compreendem intimamente, sentem que não têm outra opção senão exercer medicina noutro local ou então arriscar a sua própria saúde e bem-estar ?
“Não conseguimos que os médicos venham trabalhar para as zonas desfavorecidas”, explica ela, “por isso, quem vive aqui pode ter de esperar semanas para ver um médico de família, que tem dez minutos para o ver”. Lynsay identifica o financiamento como a questão central. Mais concretamente, os níveis desproporcionados de financiamento concedidos às comunidades abastadas, onde os problemas de saúde são menores.
É nestas condições que algumas pessoas deixam simplesmente de contactar o consultório médico e passam a automedicar-se numa das inúmeras farmácias locais, onde analgésicos com codeína, altamente viciantes, medicamentos para dormir e potentes misturas para a tosse são publicitados de forma proeminente nas montras e estão facilmente disponíveis sem receita médica. É também nestas condições que as dores de dentes se transformam em abcessos que requerem cirurgia de emergência; as dores se transformam em problemas crónicos de mobilidade; os nódulos estranhos, rapidamente esquecidos, se transformam em cancros em fase 4 e os problemas de saúde mental e as dependências se transformam em mortes por drogas e suicídios.
“A desconexão tem definitivamente que ver com aqueles que fazem as políticas”, diz-me Lynsay. Ela acredita que o SNS, por si só, não pode resolver as desigualdades na saúde porque estas são causadas por questões sociais mais amplas, como a educação, o desemprego e a habitação, mas que a falta de financiamento do SNS na última década exacerbou muitos dos problemas a longo prazo, deixando diferentes fações dentro do SNS a lutar pelo mesmo pote de dinheiro cada vez mais escasso.
Lynsay questiona a sensatez de dividir os recursos igualmente entre todos os consultórios, independentemente das necessidades, e acredita que esta fórmula de financiamento é a razão pela qual o fosso entre as classes sociais no que diz respeito à saúde está a aumentar. “O conjunto esmagador de provas mostra que as pessoas das comunidades mais pobres têm pior saúde (também numa idade mais jovem) e têm uma maior necessidade de financiamento para reduzir as desigualdades na saúde. É evidente que a distribuição igualitária do financiamento está a conduzir a uma maior desigualdade.”
Apesar de as pessoas de meios mais pobres necessitarem de mais cuidados de saúde do que as de comunidades mais ricas, recebem menos. Os problemas de saúde dos doentes mais ricos tendem a ser menos complexos – multimorbilidade e pobreza são sinónimos – exigindo menos tempo para os explicar durante uma consulta, mas podem receber, em média, mais um minuto ou mais com os seus médicos do que alguém de uma zona mais pobre. Uma análise efetuada pela Health Foundation em 2020 revelou que os doentes das zonas mais ricas recebem, em média, 11,2 minutos, enquanto os das comunidades mais desfavorecidas recebem 10,7 minutos. Não se trata de uma anomalia. Este desequilíbrio está inscrito nos sistemas de saúde e é conhecido neste domínio como a “lei dos cuidados inversos”.
Esta é uma comunidade definida culturalmente pelos seus problemas sociais e de saúde induzidos pela pobreza. Por cada ataque cardíaco, acidente vascular cerebral, morte por droga, homicídio e suicídio, há inúmeros familiares e amigos na periferia que têm de absorver a perda de um ente querido enquanto prosseguem com as suas próprias vidas difíceis. Aqui, toda a gente está de luto por uma perda de algum tipo.
O estilo de vida tão frequentemente associado às pessoas que vivem em comunidades pós-industriais como esta – comer em excesso, beber e consumir drogas em excesso, jogar – proporciona um conforto temporário e uma familiaridade e continuidade fugazes numa existência que pode ser caótica, profundamente desanimadora e dura. Muitos adotam atitudes fatalistas em relação à sua própria saúde porque é uma forma de exercerem controlo sobre circunstâncias externas e internas que, compreensivelmente, sentem estar para além delas.
Em zonas como Possil, no Reino Unido, as pessoas que mais necessitam de cuidados são simultaneamente as mais afastadas dos serviços de saúde que poderiam melhorar ou salvar as suas vidas. A esperança de vida dos homens é de 66 anos e a das mulheres de 73 – enquanto ambos os sexos tenham a esperança de vida mais baixa de todos os bairros desta cidade. O número de pessoas que se deslocam com bengalas, armações, cadeiras de rodas ou scooters de mobilidade é simplesmente impressionante.
Entretanto, os responsáveis políticos, desejosos de manter as boas graças das classes médias, estão demasiado atentos aos seus próprios interesses eleitorais a curto prazo, em detrimento da igualdade sanitária a longo prazo. E sempre que agem em função desses interesses, adiando assim a confrontação com a realidade de que os cidadãos mais ricos acumulam demasiados recursos, os mais pobres adoecem e morrem.
Mas talvez o aspeto mais chocante do atual debate sobre saúde pública, tantas vezes centrado em noções de responsabilidade individual e não em sistemas que comprovadamente favorecem os cidadãos mais ricos, é a distância que a maioria das pessoas mantém da verdade feia e irrefutável: a falta de saúde é absolutamente uma escolha – uma escolha política.
Extraído de The Social Distance Between Us: How Remote Politics Wrecked Britain por Darren McGarvey, publicado por Ebury Press em 16/06/2022.
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Darren ‘Loki’ McGarvey é um artista escocês de hip hop e comentador social. Em 2018, o seu livro Poverty Safari ganhou o Prémio Orwell e o seu novo livro The Social Distance Between Us (Ebury Press) saiu em maio de 2023.


